quinta-feira, 6 de agosto de 2009

VAQUEIRO MARAJOARA - ENCANTARIAS, CHULAS E LADAINHAS

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.Original aqui:
 
 
 
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Marcos Quinan


Vaqueiro Marajoara
Encantarias, Chulas e Ladainhas





2008




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Revisão
Camilo Delduque, Paulo Fraga

Fotografia
Marcos Quinan

Projeto Gráfico e Edição
Marcelo Quinan

Apoio
Lado de Dentro





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Para:

Jacaré
Preto Juvêncio
Ruxita
Elvira
Alacizinho
Nilson
Celso
e
Joãozinho




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“No coração a gente tem é coisas igual ao que nem nunca em mão não se pode ter pertencente...”

João Guimarães Rosa




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Convidados; Nilson Chaves, Celso Viáfora, Joãozinho Gomes e eu, estivemos no Marajó onde passamos uma semana, embrenhados nas fazendas das margens do Paracauari na perspectiva de conhecer mais profundamente os valores culturais do Marajó e traduzi-los na nossa criação individual ou mesmo idealizar algum trabalho coletivo tendo como foco a cultura da Ilha do Marajó.

Lá freqüentamos a lida do vaqueiro e as pajelanças, ouvimos historias, chulas e ladainhas, recolhendo tudo o que pudesse traduzir o lugar e sua gente.

A idéia coletiva foi de um documentário cuja figura central seria o vaqueiro marajoara que, em nossa observação, sintetiza toda a cultura marajoara – seus modos, as chulas, ladainhas, pajelanças e a solidão que paradoxalmente os une em vez de separá-los. O jeito de lidar com a natureza, com o gado vacum e bufalino e com as águas e a estiagem.

O documentário seria todo narrado pelo vaqueiro centenário Preto Juvêncio e baseado em sua experiência de vida e de seus companheiros de profissão. Escreveríamos o roteiro, as músicas e canções baseadas nesta narrativa.

Lamentavelmente o projeto do documentário não vingou.

Do material recolhido, historias, palavras, modos, crenças, pajelanças, doutrinas, a oralidade, vestimenta, sensualidade, amores, formas de lidar com o trabalho, as encantarias, comidas, remédios naturais etc... transformei num feixe de poemas, sempre com o canto de uma doutrina (canto de pajelança) recolhida e adaptada ou mesmo criadas para funcionar como sabedorias em cada texto escrito, já com intenção de serem musicados, na tentativa de reavivar as chulas e ladainhas marajoaras.

Neles transpiram o vaqueiro marajoara e sua luta cotidiana. A rudeza dentro da harmonia que é sua vida. Seus quereres, fazeres, jeito de falar e a convivência social, o respeito com a natureza e a sabedoria de seus menores modos.



Vez em sempre
Os pés descalços
Calçando o mundo

No lugar que passado
Não é longe

No lugar marajó
Meu sertão


MQ




“Onde índio se escondeu
Quilombola já se escondeu
Curiboca esconde agora”






Vaqueiro velho do Desaguadouro

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Nos campos virentes
Lá no Desaguadouro
Lugar de aruanãs e acarás
De salga e aningueiras
Aracus e curimatás

Onde só caboclo sabe
Qual caminho de chegá
Ensina pra todo mundo
E ninguém sabe encontrá
Teve gente que por perdido
Se aportou em Muaná

Lá vive um ser cambado
Que se esforça pra andá
Parece com mucura
Imita tamanduá
Um ser que não tem tamanho
Mas tem jeito de atacá

Com semblante encanecido
Duas sementes no olhá
Sabe cantá dolente
Encanta quem apreciá

Dizem que foi vaqueiro
Nos tempos lá do passado
E sofreu a desventura
De amor atraiçoado

Por isso quando caboclo
Vai por lá trabalhá
Põe algodão nos ouvidos
Evitando se encantá





“Montaria derrubou
Vaqueiro ficou cambado
O amor desgovernou
Andou pro outro lado”

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Santinha do Arari

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No cheiro anunciando
Espostejado de tucunaré
E a lua dando entrada
Na janela do chalé

É dia de muita festa
Tem gente que nunca vi
Rezando bem rezado
Pra Santinha do Arari

Cumprindo devoção
Com iguaria diferente
Um peixe bem pescado
Temperado no ardente

No pote muito caxiri
Esperando na cozinha
Acabar a obrigação
Dos homens na ladainha

Só esperando a fogueira
A lua empresta o luar
E histórias de vaqueiros
Exige ouvir contar




“A lua preparou
Com seu jeito de bordar
Na ponta de sete estrelas
Sete laços de luar
Estendeu a sua rede
Como quisesse pescar
Nenhum peixe ela pegou
Mas pescou o meu olhar”

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Vaqueiro jogador

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Tinha gênio ominoso
Era muito rabugento
Evolava mau cheiro
Em todo qualquer momento

Desejo que acerbava
Tomou tudo que tinha
Apostava em qualquer jogo
Mas a sorte nunca vinha

Pedia ao encantado
Buscando se merecia
Rezava até ao diabo
Nenhuma prece valia

Um dia apostou a vida
Na morte de todos os medos
Esperou a Mulher Cheirosa
Pra desvendar seus segredos

E deu-se o maior encontro
De todo aquele lugar
O vaqueiro pegou o cheiro
E saiu sem se lanhar

Freqüentou a pajelança
Já livre de todo azar
Curou doença afetiva
Nunca mais quis apostar








“Quem passa no Cruzeirinho
Deixa lá o seu segredo
Se for de manhãnzinha
Não precisa de ter medo”

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Amansamento

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Presentes naquele silêncio
Folhas trazidas no vento
Entre olhares desconcertados
Fanadas como momento

Seu cheiro evanescia
E ainda tinha sedução
Por fora eu resistia
Por dentro acho que não

Foi dando um pesadume
Quando olhei para ela
Flor presa nos cabelos
Corpo no vão da janela

Com um gesto desabrido
Soberbo me desviei
Puxando a rédea pra longe
De onde eu desejei

Juntando toda coragem
Que tinha no coração
Levei pro amansamento
A brabeza da paixão








“Um ser pode ter tamanho
De um deus ou criatura
Dependendo do momento
E de como se afigura”

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Histórias esquecidas

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Histórias esquecidas
Nas noites de fogueira
Canto de lamento
Contando a vida inteira

No mar o sentimento
No rio sobra razão
No campo o fundamento
No encanto a sedução

Surrão sempre atulhado
De trabalho e valentia
Um tanto de solidão
E outro de alegria

No rogo duma canção
São parentes por destino
Conhecem tanto o perdão
Quanto qualquer desatino

Deu-se em merecimento
Na quantia do exato
Vaqueiro quando conta
A história vira fato








“Boca fechada é segredo
O sentir é temporão
Quem não vive com seus medos
Nunca foi valente não”

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Vaqueiro Terço

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Quedado na paisagem
O vaqueiro Terço tugia
De longe só olhando
O sol dentro do dia

Treslia o pensamento
Emendando palavras
Como tivesse achado
E perdido o encontrado

Canseira da apartação
Misturada com a dor
Que sente um coração
Ao perder o seu amor







“Cavalo quebrantado
Pelo oficio de valia
Trabalhando em dobrado
Descanso já merecia”

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Água tremulando

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Da forma que reconto
O jeito que ouvi contar
Sofreando aqui e ali
Pra ninguém se assustar

Vinha pelo alagado
Tocando dez montarias
Quatro éguas, seis cavalos
Cansados de muitos dias

Viu na água tremulando
O rasto que não havia
Animais se assustando
No silêncio que fazia

Pensou sucuri ou jibóia
No triz de tempo restado
Antes que a criatura
Atacasse todo lado

Veio nuns rodopiados
Pulando em todo lugar
Surgiu dentro dum estrondo
Fez tudo dilacerar

Só o vaqueiro restou
Quase inteiro pra contar
Mesmo ausente da perna
Inda teima em montar

Seu caso ficou falado
Tanto aqui como por lá
No alagado se for
O serviço de passá

Se ver água tremulando
Num silêncio de apertar
Larga tudo sai correndo
Procura aonde chegar








“Amarrei o cipó timbuí
Escondi a ponta do nó
Esperei para ver o que vi
Visagem chorando dó”

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Pegou panema

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Não soube se valentia
Podia ter seu valor
Tonteado não entendia
Sentia só um torpor

A caça sumiu pro lado
Sem ir pra lugar nenhum
Em volta tudo calado
Um cheiro tal qual bodum

No braço a câimbra subiu
A mira foi enviesada
No corpo triscou calafrio
A arma parou falhada

No caminho asselvajado
Foi onde pegou panema
Perdeu a alma no mato
Esqueceu como se rema

Encontrou-se mais de mês
Na alvura duma rede
Sem lembrar do que sabia
Sentindo só muita sede






“O real tem seu espaço
Para imaginar a vida
Especado é que não pode
Senão fica ela perdida”

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O tempo

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Parece até foi ontem
Fui tirar o pau do santo
Quando ela foi embora
Fiquei só com o pranto

O tempo tem seu veneno
Demora dói devagar
Divide qualquer verdade
Que a razão quer calar

Também contém a cura
Que vem bem lentamente
Desmanchar a desventura
Apagando o latente

Um dia sentimos o amor
Viver no veneno do tempo
Em outro afogamos a dor
Na cura que nele tem dentro







“São verdades não histórias
Porque são a própria vida
Quem no mundo já amou
Se curou duma ferida”
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Vaqueiro Bidó

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Pedi que benzesse tabaco
Acendi seu cheiro no ar
Espargindo com fumaça
Esperei quem quis chegar

Chegou o vaqueiro Bidó
Escondendo o que não vi
Veio vindo bem sereno
No fumego tauari

Cantou sua doutrina
Curou meu espinhaço
Com um grito no ouvido
E a força do abraço






“Imaginário não está preso
Não tem traço que o diga
Entrelaçam é a história
Que vive em cada vida”

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Gota d’água

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Caviana busco o rumo
Mexiana onde é o mar
Quando será o desafio
Que o vaqueiro quer olhar

É renda a borda branca
Que vejo bem acolá
Ou então é o bravio
Preparando para lutá

Seja qual for o caminho
Onde esteja meu valor
Sou água bem pequenina
Nascida de uma flor







“Soberana água do mar
Que a terra vem beijar
Onde brabeza de rio
Todo dia vai morar”

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Benzedura

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A verdade inventada
Retirou da estatura
Destruiu todo legado
Que tramava a usura

Pediu proteção pra casa
Benzeu de olhar olhado
Reforçou a mestiçagem
Remorso virou de lado

Desejou que o mal ficasse
Só em quem o perseguia
Rezou foi dentro da vida
Do bem que ali erguia

Chamou parte do querer
E também muita fartura
Um tanto maior da lei
Que só no amor mensura






“Veneno tiro com as mãos
Panema com pensamento
É só emprestar a fala
E fazer o chamamento”

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Estalo de galho turiá

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Tomei gole da branquinha
Terminado o salgamento
A cambada de pescada
Temperei com bem coentro

No jirau colhi jambu
Trouxe cuia de farinha
Aturiá estalou no fogo
Toda seiva que retinha

Nessa hora noutro gole
Saudei Boaventura
Dei um tanto para Mera
Agradecendo a fartura

Assim sempre que for usar
Fogo de galho aturiá
Não se esqueça de lembrar
Quando ouvir ele estralá

De cada um dos vaqueiros
Que vivem lá no sagrado
Zelando pelo destino
Desse mundo judiado






“Barranco de canarana
Toiças de mururé
Meu coração flutuante
Nunca sabe o que qué”

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Apartação

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Campos altos, campos baixos
Quantas crias eu descubro
Contando todo gado
Reunido nesse outubro

Campos altos, campos baixos
É hora da castração
De refinar a malhada
Fazendo a marcação

Aproveitar o estival
O seco e seu conteúdo
Escutar muita história
De vaqueiro façanhudo

Sonhar com quem me espera
Ouvir chula a noite inteira
Debaixo do estrelado
Ao redor duma fogueira






“Entrelaço cada modo
Num pedaço dessa vida
Por isso que o meu laço
É meu ponto de partida”

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Nativas

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Canteiro, jiraus, aterros
Plantados com minhas mãos
Gengibre, capim-marinho
Coentro e manjericão

Canteiro, jiraus, aterros
É lida das minhas mãos
Desinflama, amor-crescido
Um pé de barbatimão

Canteiro, jiraus, aterros
Colheita das minhas mãos
Quebradeira e cariru
Jamacaru plantei não

Entre tantos muitos zelos
Aromáticas e curativas
Cuido plantas de remédio
Do lugar somos nativas






“Sorte da terra
Que dá serviço
Sorte na vida
Se tem amor”

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Bufalinos peregrinos

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Nasceram das ondas altas
No escuro que era breu
Num mar demais profundo
Que o mundo desconheceu

Quando a morte os afundou
Ficaram suspensos no ar
Luzindo os brilhos seus
Em duas réstias de luar

Chegaram no Marajó
Dentro dum encantamento
Sem saber qual direção
Havia em cada momento

Bufalinos peregrinos
Vagaram sem direção
Misturando seus lamentos
Com qualquer imensidão

Bufalinos peregrinos
Quando olham para o mar
Não esquecem o encanto
Que um dia os viu chegar






“Maré, maré, maré
Maré no alto mar
Joguei pedra no mundo
Agora que eu vim brigar”
(*)




(*)Domínio Público Adaptado

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Ensinando navegar

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Esqueleto de paricá
Braçame de pracuíba
Forro de sapucaia
Agrado pra toda vida

Tatajuba serve pra tudo
Da quilha até o timão
Acabou pau amarelo
Cedro não tem mais não

Acapu já rareou
Não adianta querer tirar
Se achar ao menos um
Espere o seu serenar

Formato se faz com a forma
De sapucaia e piquiá
Itaúba turu não vaza
Calafete o que furá

Depois firme o flutuo
Ensinando navegar
Afine cada balanço
E batize em alto mar






“A sorte pra quem partir
Descanso pra quem chegar
Seu cheiro ficou aqui
O meu eu trouxe do mar”

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Tem medo do anhangá?

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Conhece de visagem?
Tem medo do anhangá?
E das almas errantes
Que vivem em tudo que há?

Sabe andar nas sombras
Como espírito de uma dor?
Gosta de beber cangueras
Pensando também no amor?

Sabe todos os invisíveis
Que o mundo viu contar
Alguns deles eu conheço
Todos gostam de fumar

Muitos têm uma decência
Que é muito singular
Só mexem numa disgrama
Se alguém encomendar

Faz o que faz fazendo
Se a criatura abonar
Sabe qual o jeito da vida
No natural se alinhar

Muitos não toleram nunca
Ver harmonia se quebrar
Por isso fazem redução
Se a natureza precisar







“Debaixo duma cuieira
Vi fumaça se espalhar
Senti cheiro de tabaco
Fui ver era o anhangá”

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Pedido de amigação

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Permissão de parentesco
Pediu olhando pro chão
De lá quis levar Maria
A dona de sua afeição

Ao passar pela lindeira
Sentiu um tenso na mão
Semblante empalidecido
Muita dor no coração

Finou sem um gemido
Na porta da aflição
Dentro do infortúnio
Que na vida é razão

Restando deixou Maria
Viúva sem atenção
No amor só de aceitar
O pedido de amigação







“Coração bate apertado
Pode ser algum defeito
O fim que já é chegado
Ou amor doendo o peito”
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Camutins

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Onde as águas são limites
Camutins lugar que é meu
De lá vim muito pequeno
Algum santo me valeu

Lá deixei minha família
Vivendo no bem da vida
Entre caboclos da beira
Com a sorte merecida

De lá vim com vaqueiro
Na garupa garantida
Com ele fui aprendiz
Hoje herdei sua lida

Entendo de vaqueirice
Mas penso um dia voltar
Levando meus desenganos
Pra esconder no meu lugar






“Baixa rasa, baixa funda
Monta as águas, examina
Campos altos e mondongo
Qualquer teso me ensina”

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Tudo ficou maior

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Comi farinha baguda
Vi a dança do tangará
Andei por surjões de terra
Já remei no Tarauá

Tomei a beberagem
Vi matar muito veneno
Já comi piracuí
Bebi água do sereno

Com ervas cuidei curuba
Já dormi olhando ao léu
Andei com gado bravo
Ouvi estrondar o céu

Existi em muitas coisas
Que consiste meu redor
Mas foi só com seu amor
Que tudo ficou maior






“Coaxou a cutaca
Ao longe... longe... longe
Um latido ouvi chegar
De longe... longe
Esbarrou na carobeira
E fez cama pra deitar
Não latiu a noite inteira
Me esperando acordar”

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A oiara

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Em noite de lua cheia
A oiara vai banhar
Entrando mar adentro
Vai seus cabelos lavar

Vive na ilharga dos rios
Vai ao mar só passear
Distante de sua lenda
Quer somente descansar

Anda pela maresia
Embaixo de sol e luar
Descansando ela inventa
Jeito novo de encantar







“O rio pejou de lamento
Foi desespero no mar
A lua se foi na noite
Deixou somente o luar”

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Fumigação

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Cera do sapo cunauaru
Alecrim e alfazema
Misturados bem no breu
Depois de uma novena

Na porta põe ferrolho
O janelão feche inteiro
Feche tudo bem fechado
No quintal faça o aceiro

Fumigado vai nas frestas
Espantando o apresentado
Limpando tudo que empesta
Ou que for por lá achado







“Coaxa cunauaru
É sua a minha casa
Morada do bem querer
Distante de qualquer vasa”

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Encruzado

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Rogos de esquecimento
E um destino encruzado
Pra curar é invisível
O nada é tudo calado

Escondidos pela noite
Na escuridão visceral
O profano e o sagrado
Resumem o natural

Águas vivas, águas mortas
Dentro do mesmo sacado
Curadores vêm da terra
Pra semear um legado

Fazer bem às criaturas
É presente do passado
O que tem numa puçanga
Representa cada lado






“O caboclo sabe
Quando é vão
O caboclo sabe
Aonde é são”

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Uirapuru

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Japuaçu bicou o fogo
Procurando por calor
O bico ficou vermelho
Agora é sua cor

Japiim canta imitando
Tudo que ouviu cantá
Todas as aves do mato
Menos tanguru-pará

Jurutaí com seu agouro
Só da sombra aparece
Quando a noite é escura
Sua risada enlouquece

Juruti que traz sorte
De dentro do seu tajá
Espanta até a morte
Deixando o amor ficá

Em volta tudo se aquieta
Harmonia corre o ar
Só o encanto desperta
Quem sabe ensina cantar







“Do ninho tirei pedaço
O cauré não disse não
Foi logo pedindo um naco
De cabeça e coração”

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Tajá

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Vivia só de ausência
Lidando com o de lidar
Sentindo muita carência
Sem ninguém pra consolar

Tajá-pinima, piranga
Tajá-puru, taiurá
Erê! Coaraci-tajá

Busquei um tajá curado
Trabalhado nos segredos
Queria o ente amado
Amarrado sem os medos

Tajá-pinima, piranga
Tajá-puru, taiurá
Erê! Coaraci-tajá

Quando ele apareceu
No rumo que não errou
Seu olhar me convenceu
Com amor me aprisionou







“Prendeu pode soltar
Erê! Coaraci-tajá
Soltou pode voltar
Erê! Coaraci-tajá”

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Mar doce

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Quem cruza esse mar doce
Do Arari, Anajá ou São José
Encurta as pernas na sela
Temendo rabada de jacaré

Quem anda nesse mar doce
Do Arari, Anajá ou São José
Vai em sempre encontrar
Prosa e uma cuia de caribé

Quem chega nesse mar doce
Do Arari, Anajá ou São José
Procura rês desgarrada
Ou destempero em corpo de mulhé

Quem vai desse mar doce
Do Arari, Anajá ou São José
Se a donzela é formosa
Volta para perguntar se ela qué







“Encontrar a ventura
Remando sem parar
Levando cada encanto
Pras bordas do alto mar”

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Onde a mata se esconde

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Onde a mata se esconde
Igapós restam sozinhos
Os cipós no ar retrançam
O mormaço faz seus ninhos

Lá o tempo se confunde
Num quieto que é encantado
Lugar de viver Quem Dera
E muito vaqueiro finado

Um lugar que a maresia
Salga a carne do caçado
E qualquer favo de mel
Que tirar já vem coado

É lugar para o sofrer
Purgar um pouco da dor
Sendo amor é o querer
Afincando seu valor

Lá o tempo se espalha
Nas barras de todo lado
Quem Dera virou menino
Encantando o encantado







“Nasci de um pingo só
Foi em noite de luar
Ouvi uma ladainha
Acendi o meu olhar”

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Tempo no Marajó

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Mãe da noite chama o sol
Mais um dia amanhece
No apagar de cada estrela
Capim foice refloresce

No alagado canarana
Balança na maresia
Sucuriju troca de couro
Marrecas de gritaria

O rosilho segue lento
Pedindo a pinicada
Opinioso gavião
De longe grita risada

Pro vaqueiro a paisagem
Passa qual redemoinho
Cada tempo é sobreposto
Mostrando um só caminho







“No sonho é paraíso
Inferno no pesadelo
No tempo do Marajó
O real quer é desvelo”

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Vaqueiro Juvêncio

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Juvêncio encosta a canoa
Vem contar seu segredo
Qual foi dos encantados
Que escreveu seu enredo

E conte também se a lua
No luar te temperou
Com o visgo da saudade
Pra lembrar o que amou

Diz em qual cavalo monta
Cavalgando tantos anos
Se tem dor que ainda resta
Agarrada aos desenganos

Juvêncio encosta a canoa
Vem contar seu segredo
Me diga qual foi o lugar
Aonde deixou seu medo

E se algum ser mantém
Amarrado em seu quintal
Que fornece a juventude
Desse jeito natural







“É de qualquer mistério
Que tiro minha precisão
No canto que me prepara
Para o tempo de então”

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Viração de tartaruga

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Paxicá faz-se do fígado
Preparado num guisado
Usando pouco tempero
O sabor é bem falado

Arabu faz-se depressa
Ovos crus numa gemada
Para sustentar o corpo
Em qual for sua jornada

Manta de filé assado
E farinha amanteigada
Da manhã no tabuleiro
Viração já encerrada

Seu casco vira panela
Contém sal e a gordura
Já nasce bem temperada
Com sabor de criatura







“Pitiú do tracajá
Muçuã que recolhi
Cada qual no seu tempero
Sabido é o jabuti”

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Perau

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Mar do povo do rio
Rio do povo do mar
Tudo vem misturado
Pois então é rio-mar

Perau começa no rio
Chega na beira do mar
Formando um só fio
Sem lugar de atracar

A lua aponta o lume
Para águas balançar
O rumo é que resume
Qual a hora de chegar

Balancim que é de ouro
Vem correndo me ajudar
Balancim que é de ouro
É do rio e é do mar







“Jaciara... Jaciara...
Na terra é princesa
Na mata é guerreira
Do mar ela é a rainha”
(*)





(*)Domínio Público Adaptado

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Erê! Meu Marajó

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Erê! Vida nascendo no Marajó
Pirauíba, Aruanã, Acará
Aracu, Poraquê, Tamanduá
Jabotim, Tiepiranga, Corimatá
Tatu, Gaturama, Jacundá

Erê! Vida crescendo no Marajó
Preguiça, Queixada, Anajá
Sarapó, Morcego, Tamoatá
Piranha, Quatipuru, Jucá
Muçuã, Tucunaré, Aturiá

Erê! Vida correndo pelo Marajó
Tem-tem, Jacamim, Guará
Anta, Sanguessuga, Muaná
Mucura, Jacaré, Tracajá
Cutia, Coruja, Maruacá

Erê! Vida vagando no Marajó
Aquariquara, Jacurutu, Tarauá
Tartaruga, Caxinguba, Atuá
Curica, Bacaba, Guajará
Jaburu, Maracanã, Camará

Erê! Vida vivendo no Marajó
Caititu, Maguari, Mutuacá
Araçari, Tuiuiú, Maratacá
Capivara, Papagaio, Preá
Urubu, Tucano, Piquiá

Erê! Vida morrendo no Marajó
Camarupi, Muirim, Jaburaicá
Paracauari, Pracuuba, Gurupá
Arari, Jacaretuba, Caracará
Anabiju, Paracaúba, Rio Pará






“Tem peixe-boi
E um boi que é peixe
Tem pirarucu
E angu de leite”

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Boi Selado do lago Guajará

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Ele vem pelos campos enluarados
Das noites encantadas do Guajará
Arqueado e sorrateiro sai das águas
Carregando no dorso o mal que há

A peste, doenças e cada façanha
Vivendo dentro do olhar que dá
Quando esparrama gado manso
Que em qualquer cercado está

Devolvendo a braveza de animal
Livre em qualquer balcedo que vá
Aumentando o tamanho da criatura
Que é natural solta mais acolá

E tanto mal que ruminam e juram
Que traz no dorso de dentro de lá
Não são mais que invenções e loas
Que esparramam nos lados de cá






“Sucuriju perde o caminho
As onças fogem de medo
Ninguém pode chegar sozinho
E nem perto do seu segredo”

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Arte antiga dos pajés

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Águas postas em caminhos
No verde e fundo dos leitos
Reino que inventa mistérios
No feito de que são feitos

Sem amansar silêncios
Que vagam como gritos
Nos remansos do estuário
Desfazendo seus conflitos

Sem esquecer dos musgos
Tão antigos em seus eitos
Como a força do imaginário
Espalhando seus preceitos

Sem esconder as crenças
Da fé e dos seus direitos
Põe-se em cada criatura
Em modos e muitos jeitos

Na arte antiga dos pajés
A cura não tem segredo
No seu plano ancestral
O natural não tem medo






“Doutrina cantei
Um gesto pedi
O guia fumou
Do meu tauari”

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Está no meu pensamento

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Na beira do mar salobro
Que costeia a imensidão
Onde invento o momento
Pra me perder da solidão

A onda de espuma branca
Que desenha a arrebentação
É contorno dos teus seios
Procurando minhas mãos

O luar que cai na areia
São teus braços pelo chão
E o brilho da estrela
Um pedido de perdão

Está no meu pensamento
Seu jeito de sedução
Menor que o firmamento
Maior que minha razão








“Os olhos joguei no mar
Nos braços da maresia
Se alguém os encontrar
Entregue logo a Maria”

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Qualquer dia no Marajó

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Igara morou no tronco
E na mão de quem lavrou
Urubu-tinga voou da mata
E no olhar que o olhou

Acapu cresceu nos altos
E nas flores que florou
Copaíba tocou entranhas
Da doença que curou

Chifre largou rasgadura
O animal recuou
Braço levou matupá
Para as águas que sonhou

A vida vai, vem e volteia
Misturando quem é só
No laço que serpenteia
Qualquer dia do Marajó







“Aguapé não me sustenta
Rédea Grande revelou
Maromba do companheiro
Na mentira afundou”

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Festa do Rosário

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Foi na festa do Rosário
Dançando verso cantado
Que vi aquela donzela
E mandei o meu recado

Venha pra perto de mim
Se eu for do seu agrado
Sou vaqueiro de renome
Quero viver ao seu lado

Não demorou a resposta
Que me fez sentir amado
Marcava ela encontro
Explicando o explicado

Que fosse na hora morta
De uma noite começada
Nas pontas da lua nova
Dentro da maré vazada

Assim foi, fui e fiquei
Na areia da praia esperando
Hoje moro junto dela
E no mar vamos reinando








“Nosso abraço é pororoca
Nossa reza é maresia
Vivemos só de amor
Nosso sono é calmaria”

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Rezadeira

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Dava arruda pra mascar
Urucu e amapá
Vinagreira e flor de aninga
Verônica, mucuracaá

Conhecia o que não se diz
Colhia com a própria mão
Sabia dos encantados
Morando em cada porção

Curava tirando cura
Da erva de São João
Misturada, sabugueiro
Andiroba e barbatimão

Erveira vai dar banho
O mundo tem salvação
Basta saber que tudo
Tem sua exata feição





“Salve o povo da terra
E viva a sereia no mar
Quando chamo por calunga
Começo logo a dançar”
(*)




(*)Domínio Público Adaptado

.

Mãe da noite

.


Mãe da noite fez o medo
Fez também a valentia
E não guardou segredo
Pra manter a harmonia

Veio em cima da maresia
Cantando sua doutrina
Espalhando sabedoria
Ensinando quem ensina

Deu ao medo quem tem medo
Ao vaqueiro a valentia
Pro pajé contou segredo
Onde está a harmonia







“Põe raízes, folhas
Casca de pau e cipó
Seiva, ervas e resina
Musgo, visgo, fé e só”

.

Campos do Marajó

.


Nos vapores matutinos
Dos campos do Marajó
Em mondrongos vitalinos
Ou dentro dos igapós
Em lagoas e banhados
Onde o ser não vive só
Entre a cheia e a vazante
Trançados como filó
Moram tantas criaturas
Parecendo muitas mós

Sobrevoa o jacamim
Vigiando o repiquete
Na terra qualquer raiz
Sabe fazer o banquete

Taoca se põe em fila
É viva cada semente
Turu faz sua trilha
No podre à sua frente

Bandos de guarás revoam
Por rente a mamorana
Jaburus saem pra pesca
Vaqueiro canta tirana








“O tronco é de fazer casco
O cipó é de amarrá
Da palmeira só descasco
Folha que passa luá”

.

Entoado

.


Andiroba, ucuúba
Anani não tem lá
Arapari, pracuúba
Mututi quem vem lá

Siriúba, tinteiro
Mandei carta pra cá
Murumuru, caimbé
Eu vim pará-pará

Jupati, sumaúma
Acabei de chegá
Pracaxi, pau mulato
Vem pro lado de cá

Açaí, inajá
É beleza de lá
Tachi, patauá
Vim aqui pra cantá

Ajuru, cupiúba
Faço a mata calá
Mucajá, paxiúba
Depois volto pará-pará







“Erê! Pergunto pra longe
Erê! Quem é que vem lá
Se é de paz vem comigo
Se de guerra pode voltá”
.

Lundú marajoara

.


Vem dançar se é querer
Esconde seu jeito não
Aceita que vou sofrer
Se me der explicação

Veramente a beleza
Não merece escondição
Quero tocar no volteio
Do seu corpo em descrição

E viver só no maneio
Em regalo e sedução
Misturando o tempero
Que arde nas minhas mãos

Vem rodear meu querer
Vem saciar meu amor
Deixa, eu quero viver
É dentro do seu calor








“O cheiro que já é seu
Exalando o meu calor
É vontade no desejo
De dar bem mais amor”

.

Pedido

.

É assim que me lembro
Do canto que vim cantar
Com lenço no pescoço
E brasa acesa no olhar

Procurando os olhos dela
Brilhando na escuridão
Refletindo a fogueira
E pedindo atenção

Quais palavras vou falar
Para pedir a sua mão
Nessa chula declarar
Meu amor e intenção

Sei falar as mais usadas
Que o mundo concedeu
Sei contar em enversados
Tudo que me aconteceu

Mas não sei qual fraseado
Tem no sentimento meu
Só sei que sou desejado
Por isso que já sou seu








“Desejante e desejado
Fui assim desde menino
Completo foi o desejo
Incompleto o meu destino”
.

Planando pelos campos

.

No alto da castanheira
Uiraçu faz seu lugar
No rumo do horizonte
Ele guarda seu olhar

Solitário gavião-tinga
Planando pelos campos
Parece filho do vento
Resumido pelos amplos

Vive na borda das matas
Caripira é do alagado
Com seu jeito incomum
Precisa viver ao lado

Distância não o domina
Gainambé fica parado
Imóvel bem lá em cima
É o sino do alagado

O seu vôo cauauá
Manso como lagoa
Não parece disfarçar
Que o perigo sobrevoa

Lusco-fusco florestado
Lá vem o iocó-pinin
Devagar pelo banhado
Fingindo que é capim







“Plantei pé de cravo nasceu alecrim
Sou ave sem ninho, só vivo a sonhar
Com amor e muita paixão sem fim”
(*)





(*)Domínio Público Adaptado
.

Urutau

.

Urutau não pisa o chão
Tem seu jeito de evitar
Imóvel vira arredores
Comendo tudo no ar

Disfarce de um segundo
Engana qualquer olhar
Na procura da fartura
Para o bico agarrar

Até sem abrir os olhos
Tem modo de enxergar
Sem bravata é criatura
Noturna e singular

Seu vôo uma ventania
Só mudando de lugar
Nas penas tem segredo
Guardado entre o luar








“Arranquei duas penas
Do rabo do urutau
Pra ajudar a menina
A evitar qualquer mal”

.

Ladainha de pajelança

.

Quando a vida me mentiu
Não fiquei em desatino
Aceitei qualquer função
Calei a boca do destino

Persegui por muitas buscas
Transformar o meu caminho
Curando os que têm cura
Serenando quem vai sozinho

Venho é de sentimento
Bem armado de valentia
Não nego lenimento
Se alguém precisar um dia








“Fogo pra esquentá
Cachaça pra distraí
Pode chegá caruana
Fumando seu tauari”

.

Amor trançado

.

Viver preso na lembrança
Sem olhos pra ver verdejo
No corpo que ainda trança
Tanto amor ao meu desejo

Canarana esparramava
O verde melhor do ano
No tempo que eu te amava
Sem saber de desengano

Japiim cantou mais alto
Foi no dia do abandono
Senti um sobressalto
Revelando o desumano

Nos braços do desengano
Sou casco desgovernado
Navego um bamburral
Remando o meu passado








“O cordão de aningas
Retirava todo ano
A semente que vinga
Do vento que vai soprano”

.

Ser livre

.

Caboclo quando decente
Sabe ter obrigação
De viver corretamente
Sempre dentro da razão

Se quiser realidade
Liberdade é ilusão
Só existe de verdade
Dentro de uma noção

Ser livre é estar preso
Num modo de escravidão
Sentindo menor o peso
Quando cumpre obrigação

Remoendo o que é contido
Naquilo que não contém
Dando o certo por vivido
Naquilo que a si convém







“Voz perdida no caminho
Silêncio como segredo
Canto de andar sozinho
Calado gritando medo”
.

Mancha negra

.

Até o piquiazeiro deitou os galhos no chão
O lugar tremeu na terra tamanho esbarrão
A mancha negra crescendo tomou toda visão
Escondendo o que era chifre na ponta da colisão

No estrondo foi vaqueiro misturado na ação
Com cavalo, piquiazeiro muito sangue e tensão
Latência nos envolvidos em meio da confusão
Peso e chifre reunidos dentro dum escorregão

Cavalo com peito rasgado arfando aflição
O búfalo mais prevenido buscando o socavão
Vaqueiro todo esfolado apalpando a contusão
Ao longe um grito dado chamando a apartação







“Costurei suas feridas
Com espinho e cipó
E untei com valentia
Por dentro de cada nó”

.

Pedição

.


A todos que estão ouvindo
No silêncio da atenção
Um pouco vamos pedindo
No canto dessa oração

Um pouco de sentimento
Dentro de cada razão
Um tanto de lenimento
Abrandando a solidão

A benção dos encantados
Tratando o que não é são
Porção de cura e herdados
Passados de mão em mão

Pedimos por mais fartura
Que a vida dê a fração
Nos livrando da usura
Que há dentro da ambição







“Se veio de longe é benvindo
Se mora perto é irmão
Mais de muitos, os vaqueiros,
Vivem presos neste chão

.

O santo que é bendito

.


Rala mandioca, faz a tiborna
O mastro vai ser enfeitado
Tá quase chegando a hora
De tremular o embandeirado

O santo que é bendito
É Benedito em seu louvor
O santo que é bendito
É Benedito em seu louvor

Porque é dito
E é sempre bem dito
Que o sagrado e o profano
Fazem parte do mesmo plano
Vem dentro da crença
Que sagrado é o humano

Côa a tiborna, deixa apurar
A reza vai começar
Quem dança não vai tardar
Até santo sabe esperar

O santo que é bendito
É Benedito e quer dançar
O santo que é bendito
É Benedito e quer dançar







“No colo da rede
Vejo a vida passar
Lembrando de eu menino
Imitando o tangará”

.

Mãe da vida

.


Fundo da noite calada
Como um sentimento
A mãe da vida alenta
Com seu ornamento

Correm águas emendadas
Encante dos Aruãs
Mistura em cada varja
O cheiro das manhãs

Protege cada vaqueiro
E os caboclos mestiços
De intenções suspeitas
E de olhares mortiços

Defende os encantados
Por gente do seu lugar
Traz o seio da maré
Pra salgar o de salgar








“Acende o tauari
Deixa de dentro chegar
Tudo que vem de legado
E precisa se misturar”

.

Retiro do São Lourenço

.


Num têso do São Lourenço
Levantei tendal
Terminei tiração
Plantei manival

Dobrei minhas mãos
Envarei a casinha
Me cortei de saudade
Tijucando a cozinha

Esmerei no lembrar
Fiz varanda, fogão
E até altarzinho
Pro santo de devoção

Disque vem logo Merina
Desfaz qualquer engano
Não agüento esperar
Pela baixa desse ano







“Um tanto de deus é mundo
Um tanto de mundo é lugar
Em alguns eu me perdi
Noutros eu vim te esperar”

.

Braço Paracauari

.


O Paracauari é braço
É rio, é curso, é lugar
Também é caminho
Para se encontrar

É barranco descendo
À deriva do tempo
Barcos que levam
E trazem alento

Cada curva esplendor
Refletindo na alma
E na ponta da lágrima
Que o vento empalma
Ao olhar o poeta

Conduzindo destinos
O rio sem nascente
Conjuga um verso
E se põe frente a frente
Às margens da imensidão







“A emoção do instante
É valência para quem vive
Valência para quem sonha
Erê!... o poeta chorou”

.

Ladainha de batição

.


Erê! Cadê meu laço
Balança do meu arreio
Amarrado à garupeira
Levo frito-de-vaqueiro

Vasilha de arubé
Careço desse tempero
Acordo de madrugada
Ipadu tomo em primeiro

Sem destorcê o rumo
Assim faço a batição
Separando gado fino
Recolhendo barbatão

Catana já foi coado
Merecendo o ferrão
Brabeza num chifre só
Nesse boi não falta não

Ligeira solto depressa
O relho percorre o vão
Protejo meu cavalo
Evitando um esbarrão

Gado bravo eu trago
À corda de um a um
Respeito valentia
Meu medo é de nenhum







“Erê! Eu sou das águas
Conheço cada balcedo
Erê! Eu sou dos campos
E vivo sem segredo”


.

Ladainha do vento duro

.


Acenderam o tauari
Caruana foi chamado
Vento duro deu resposta
Trazendo o encantado

Batuque bateu nos pés
Bebendo um caxiri
Cantou na ladainha
Versos que nunca ouvi

Me pediu proximidade
Dizendo como vivi
No trabalho pelo mundo
Descobrindo eu aprendi

Tocando minha cabeça
Suas dores estão aqui
Enfeixadas em lembranças
Nos modos que traduzi

E cantando foi embora
No mesmo vento que veio
Não curou a minha história
Mas calou o meu receio







“Nunca vi ser mais valente
Que o passaro bem-te-vi
No perigo ele canta
Dizendo eu tô aqui”
(*)




(*) Domínio Público Adaptado

.

Chula do vaqueiro Zidão

.


Nos olhos escondia o olhar
Na boca a podridão
Semblante era de perigo
Só matava à traição

Tocaiava na vazante
Impondo sua ambição
Nunca deixou pra morte
Um gesto de compaixão

No ofício era tenente
Falado foi capitão
Sem medo foi diferente
Quando lutou com Zidão

Receio que um não tinha
Não veio no outro não
Na briga virou bainha
Seu sangue secou no chão






“Vim fazer meu trabalho
De penacho e maracá
Sou pena, sou pena real
Nessa luta sei cantá”
(*)





(*) Domínio Público Adaptado

.

Chula do vaqueiro Aniba

.


Nos campos do Marajó
Sagrado o ser valente
Rédea grande perdurada
No ofício de semente

Seis meses monta águas
Noutros seis é ventania
Correndo duma laçada
Com a vida de todo dia

Seu canto sai da alma
Soa limpo é porfia
É a voz do encantado
Galopando a galhardia

Quem espera no final
Decerto já ouviu falar
No vaqueiro mais veloz
Que a distância viu chegar

A maré enche seus braços
Os pés pedem licença
Nas patas do seu cavalo
Deposita toda crença






“É na cheia da maré
Que trago o meu penuá
Rei vai, Rei vem
Vou salvar meu Marajó”
(*)





(*)Domínio Público Adaptado

.

Ladainha das sete dores

.


Licença peço senhores
Pra sete dores contar
Licença rogo nas dores
Que é meu jeito de cantar

Nunca tive mais que a vida
E o sonho ribeirinho
Nunca fiz uma viagem
Buscando outro caminho

Nunca tive uma donzela
Que me desse seu carinho
Nunca fiz com minhas mãos
Os gestos que adivinho

Encobri com meu cansaço
O tanto do meu atino
Descobri de um momento
Como era ser sozinho

Minha magoa de calado
É aceitar meu destino




“Sou índio, sou caboclo
Uso tanga de cipó
Nas margens onde nasci
É que fica o Marajó
O lugar onde cresci
É mato de um índio só”
(*)





(*)Domínio Público Adaptado

.

Chula do vaqueiro Joque

.


Nos ermos do lá bem longe
No mundo de todo espaço
Um canto marajoara
Cai na roda feito laço

Não tinha noite nem dia
Na lida de todo esforço
Um animal o vestia
Dos pés até o pescoço

Vez nos campos alagados
Outro num tanto estiano
Sem tempo para reparar
Todo querer desumano

Seguia sempre na vida
Com a morte combinando
Seu modo de encantado
Natural e suserano

Animal enterrou chifre
Desmorrer não foi engano
Guariba surgiu das folhas
Esturrou por mais de ano

Um bote brotou da terra
Picando qual desengano
Cavalo quebrou a perna
Remédio foi só um ramo

Pescoço estalou na queda
Da morte foi desmorrendo
Encanto já se sabia
Há muito nele vivendo

Um dia o canto triste
Na distância ressoou
Esbarrando todo encanto
No desencanto do amor

Vaqueiro desencarnou
Fez valer o que é pequeno
Para gente que tem fervor
Virou, sendo, noutro pleno




“Ê guará-guará ê ...
Ê guará-mirim...
Eu conheço pelo olho
Quem fala mal de mim”
(*)






(*) Domínio Público Adaptado

.

Chula do vaqueiro Bité

.

A chula marajoara
Ressoando pelas margens
Embalou braço de rio
Pras lagoas deu aragens

Em cada merecimento
Fica muito pra cantar
Tantas partes dum momento
No viver de cada olhar

Envinha de lá pra longe
Por aqui eu quis passar
E contar minha história
Que é também a do lugar

Vivo como o desafio
Que o rio faz ao mar
Sou menor do que a vida
Mas não canso de lutar

Minha mãe não me pariu
Se foi antes de eu chegar
Na morte dela que vim
Sou nascido de um findar

Fui criado pela lida
Na presença do meu pai
Cavalguei sua desdita
Desde meu primeiro ai

Meu pai se foi numa cheia
Na tristeza afogado
Tempo ainda de eu menino
Sem madrasta ou pecado

Numa mão lavrei um remo
Na outra trancei um laço
Nos pés fiz meu cavalo
A canoa fiz no braço

Menino eu fui vaqueiro
Laçando fui coragem
Remando chorei baixinho
No rumo da minha margem

Pelas águas fui crescendo
Recebendo o encantado
Que guiava o caminho
Como estando ao meu lado

Nos retiros eu cuidei
O tanto de ser amado
Encantei moça donzela
Muita mulher de casado

Minha vida em rodopio
Foi em volta do patrão
Nos pastos segui o fio
Virei, sendo, seu ferrão




“Eu sou balanço
Eu sou de ouro
Eu venho no jogo do mar
O meu cavalo é maresia
Eu sou balanço
Eu moro no fundo do mar”
(*)





(*) Domínio Público Adaptado





FIM